ESPELHO

Em meio a um sono profundo, avisto um lago. Águas tranquilas, mas turvas. De onde estou não avisto um fundo. Inclino-me em busca de peixes ou qualquer outro tipo de vida, mas vejo apenas meu rosto.

Observo que nele há uma cicatriz entre os olhos que nunca havia reparado, mas até que bem charmosa.

Acaricio-me mais uns minutos e pela primeira vez sinto minha pele. Sinto orgulho das minhas linhas de expressão. Elas me acompanharam ao longo de todos os meus momentos difíceis e sempre estiveram ao meu lado. Sorrio e faço questão de torná-las evidentes ao avaliar minha figura no espelho que o lago me proporcionou para perceber o presente que o passar do tempo me deu. Cada canto do meu rosto, entre meus dedos, conserva uma história e, ao mover minhas mãos diante de minha face, revelo indiscretamente cada uma delas. Estão todas ali, prontas para serem apreciadas, aplaudidas, julgadas, como um livro aberto que já foi folheado e lido por todos os que passaram diante de mim e me cumprimentaram, sentaram para dividir uma tarde de café, apontaram dedos e me convidaram para brindar à vida.

Há ainda aqueles que acariciaram meu rosto como eu o faço agora ou até mais carinhosamente. Estes limparam todas as impurezas da pele, compartilharam dos mesmos sorrisos, das mesmas lágrimas, beberam da mesma água.

Solto os cabelos. Já não estão mais tão robustos como antes, mas continuam emoldurando meu sorriso e meu olhar. Hoje ambos parecem se completar. Sorrio diversas vezes e meu olhar tanto admira o abrir dos lábios, acompanhado de um revelar dos dentes ainda branquinhos, que se afoga em lágrimas.
Um misto de gratidão e nostalgia paira em meu semblante como uma folha de outono que toca o lago.
De repente ouço gotas de chuva e mais folhas caem, e mais gotas e mais folhas... Meu rosto se dissolve e de repente já não sou mais a mesma. Já não preciso estar ali, já não preciso me ver e nem ser vista.
Beijo a ponta dos meus dedos e as levo no encontro das águas do lago com as da chuva, despedindo-me, imbuída da certeza do amor que um dia vivi e que ali para sempre estará. Com os lábios cerrados, em segredo, gotas de chuva escorrem sobre meu corpo inteiro e antes que eu consiga me levantar, fecho os olhos e sinto o lago dentro de mim, com suas águas batendo forte no peito, tomando o lugar do meu coração e se fazendo espelho da minha alma.
Alma antiga, que já não tem mais licença para sentir, apenas para ser.
Eis que cessa a chuva e não sinto mais as batidas, nem do meu coração e nem das gotas no lago. Apenas vejo. Novamente lá está meu espelho, refletindo todo o meu corpo, embalado em um leve sorriso e em mãos livres, como as de um anjo dizendo adeus, no meio de uma imensidão de águas a brilhar, a me iluminar, a refletir toda a minha história em um passeio em suas águas. Minha vida eterna, meu espelho.

Clarissa Lima

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